RAQUEL BOTELHO RODRIGUES ENTREVISTA MARTA PESSOA
Donzela Guerreira “Um movimento num quadro”. Entrevista de Raquel Botelho Rodrigues, para a revista GERADOR, à realizadora Marta Pessoa.
“Queriam ser mulheres, queriam lutar, mas não abdicando da sua presença enquanto tal na sociedade, numa resistência em relação ao que esperavam delas. Resistência, nesse sentido, de não querer seguir as normas, e dissidência, no sentido em que sofreram as consequências de quererem ser autoras naquela época.“
Excerto:
Gerador – Como foi a sua descoberta de Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa? O que a cativou em cada universo literário?
Marta Pessoa – O meu primeiro contacto foi com Irene Lisboa, na escola, olhando para os manuais escolares, cujos autores quase todos homens. Acho que é aquela história comum a toda a gente e, se calhar, é ainda demasiado comum. E uma das mulheres que aparecia no meio dos textos era a Irene Lisboa, de uma forma muito subreptícia no meio dos outros autores e que me despertou logo a atenção. Os textos que apareciam nos manuais eram os textos de Uma Mão Cheia de Nada e Outra de Coisa Nenhuma, que são contos para a infância. A partir daí, foi uma descoberta, talvez não só pelos textos em si, mas por ser uma mulher no meio de tantos homens. Depois, voltei a ela, só mais tarde, quando percebi que era uma autora que passava pela escrita autobiográfica, diarística, ensaística, poesia. Confesso que Irene Lisboa é muito considerada pela poesia, mas não senti esse apelo. O meu contacto com Irene Lisboa foi com lado íntimo de Lisboa, que também é a minha cidade, das suas personagens invisíveis, mulheres sozinhas sem história, que ela escrevia nas suas crónicas urbanas, especialmente. Maria Judite de Carvalho foi uma descoberta muito mais óbvia, no sentido em que descobri numa altura já pós-adolescência, aquela altura em que se pega num livro e o livro nos agarra e arrebata. E foi Tanta Gente Mariana. Por isso, comecei pelo início da obra de Maria José de Carvalho, e, a partir daí, fui tentando ler tudo o que consegui. Mais uma vez, uma escritora de um lado mais triste da cidade, talvez, mais de solidão, que fazia os mesmos percursos que eu. Houve uma identificação, não num sentido mais íntimo, mas uma identificação pelo seu deslocamento na cidade e pela observação que fazia das personagens. Tanta Gente Mariana ficou como grande inspiração para o filme. Devo confessar que demorei vinte anos a conseguir encontrá-la em alfarrabistas.
(continua)
Publicado em: 29-12-2020